Revista Comunicação #186 – Janeiro/Abril 2010
Sonho de uma Tarde de Verão

Leitor amigo,

O que lhe vou relatar pode ser imaginação, sonho, alguma criação elaborada nos escaninhos de minhalma.

Faço-o para que você possa sentir, bem lá dentro do coração, a dimensão oceânica de uma alma nobre.

Certa tarde, antes do Natal, estava absorto em meditações nteriores, mais desligado do intenso lufalufa diário.

E o foco dessas meditações era o Centenário do Nascimento de Francisco Cândido Xavier, cujas comemorações se iniciarão no primeiro minuto de 2010, que está chegando, e terão seu ápice no dia 2 de abril.

Cansado, resolvi cochilar um pouco. Estávamos próximos das seis da tarde, e nuvens escuras escondiam o pôr-do-sol.

Semiconsciente, envolvido na penumbra do sono leve, de súbito vi-me sentado em local estranho, muito agradável.

Parecia que me situava nas faldas de uma serra, convivendo com a intensa vegetação e os brotos d’água, vindos do interior da terra fresca.

As nascentes de um rio ali estavam próximas, com seu diminuto volume, mas já se podia ouvir o inconfundível arruído do movimento das águas. À minha frente, surgiam as claridades do sol poente lá pelas bandas do Atlântico, mais a oeste, e, surpreso, observei no entorno árvores diferentes.

Não era a vegetação típica de nossa Serra do Mar, que apresenta como cartão de visitas o manacá da serra e suas flores multicoloridas, e sim tílias, carvalhos, plátanos e pinheiros, sofrendo em graus variáveis as primeiras manifestações do frio invernal.

O ambiente me fez compreender que estava no continente europeu, em terras que confrontavam o mar a oeste, evidenciando tratar-se da faixa ocidental do Velho Mundo.

Também os pássaros não eram os nossos conhecidos bem-te-vis, sabiás, sanhaços e tico-ticos, nem tinham o seu canto exuberante.

Vi tordos, estorninhos, os onipresentes pardais, cujo alarido o frio não conseguia calar, entretanto não ouvi o trinado dos rouxinóis, certamente em fuga para o sul, desesperados com o frio. Estatelado ante aquela natureza tão bela, não conseguia entender o que ocorria. Sentado, meditava, girando algum graveto entre os dedos, observando ariscos esquilos.

Envolto em suave, mas marcante luminosidade, eis que desce dos céus e senta-se ao meu lado alguém que identifiquei com surpresa e emoção.

— Chico, você está aqui? Não é possível. Os anjos visitam a Terra?

Pensei desconcertado: não creio ter morrido, pois minha atmosfera espiritual densa e pobre me situaria, no outro lado da vida, em locais mais tristes…

— Sou eu mesmo, Caio, disse abrindo largo sorriso, o seu inconfundível sorriso.

Vim visitá-lo e pedi aos nossos amigos espirituais que escolhessem um pouso de paz e de reminiscências, a fim de que eu pudesse tranqüilizar sua alma atormentada.

— Ah! Chico, não sei o que falar. Carrego a mente torturada por remorsos, busco com sofreguidão rever no trabalho intenso os momentos caros de nossa convivência, aprendendo o que você me ensinava com tanto desvelo.

Aprendi, mas não consegui vivenciar tantos ensinamentos. Permaneço na medíocre posição em que me situei na vida, tendo tudo e pouco realizando.

— Não, meu caro, as coisas não correm desse modo na vida. Não correm não.

A Divina Misericórdia paira acima de nossas limitações, mostrando-nos sem cessar, seja no verão quente de nossa terra ou aqui nesse inverno agradável, nas noites de céu pontificado de estrelas ou nos dias de tormentas assustadoras, que o caminho é um só: a longa vereda cultivada com amor, embora permeada de obstáculos aparentemente intransponíveis.

Não se desespere, pois as portas da redenção nos estão sempre abertas.

— Infelizmente, obtemperei, é complicado aceitar que, mesmo conhecendo as realidades do espírito, erramos tanto…Por quê?

Com paciência, Chico respondeu:

— Você sabe que Paulo de Tarso, cultor da lei religiosa de seu tempo, agiu sem piedade com Estevão, e o senador, com os elevados predicados da inteligência, impôs árduos sofrimentos a Lívia.

Mas, esses grandes Benfeitores de nossas vidas perseveraram no bom combate e legaram-nos, ainda nas difíceis lutas de suas reencarnações ao tempo do Cristo, os exemplos mais exuberantes de amor e renúncia.

— Você é sempre o mesmo, Chico, amoroso e terno. Agradeço-lhe a compreensão ante minhas limitações. Se tivesse o brilho de Humberto de Campos, tentaria fazer uma entrevista com você neste recanto de tanta paz. Em nossa gíria popular, contudo, dizemos que quem não tem cão caça com gato.

Assim, vou imaginar que em meu lugar estivesse agora o nosso saudoso acadêmico, cujos anos de sofrimento tanto marcaram os brasileiros que o conheceram ou leram seus livros, escritos com a pena molhada de tinta e de lágrimas, e fazer-lhe algumas perguntas. Posso?

— É claro, respondeu Chico, acrescentando humildemente:

— Que não seja nos moldes do encontro que nosso Humberto teve, já na Vida Espiritual, com Judas na Jerusalém de tantas recordações, pois não tenho a grandeza d’alma do apóstolo incompreendido…

— Vamos lá, então!

Você tem notícia do lançamento do Selo Comemorativo que os Correios vão lançar em sua homenagem. Isso o alegrou?

— Caio, a respeito do selo, deixou-me feliz a homenagem à nossa Doutrina Espírita de consolações e esclarecimentos.

Minha imagem, colada nos envelopes, querido amigo, me trará alegria na medida em que as cartas que percorrerem nosso país e o mundo levarem paz, consolo e esperança.

Eu ficarei feliz, se alguém se detiver no selo e disser: “aquela pobre alma falou muito de Jesus e procurou seguir-lhe os ensinos”.

Continuo o mesmo na Vida Espiritual, não mudei nada. Seria mais razoável que se falasse em centenário de nascimento de ‘Cisco’ Xavier…

Olhei para ele com imenso carinho, sabendo que contemplava o missionário do bem, a alma engrandecida na dor e no trabalho diuturno. Inumeráveis vezes, encontrei-o tudo fazendo para secar lágrimas e despertar sorrisos de alegria e esperança.

E voltei à entrevista.

— Chico, você tem 100 anos!

Vejo-o com a jovialidade que marcou profundamente sua presença entre nós. Você está descansando na Vida Maior?

— Carregando pedras… O descanso vem com o trabalho.
Parece paradoxal, não é mesmo?

Há muita gente sofrendo aí e por lá, no outro plano de vida. Urge que se multipliquem as mãos em benefício desses espíritos ligados ao corpo e também em favor dos que dele se desprenderam, vivendo em desespero no mundo espiritual.

A Rainha Santa, quando me permite estar a seu lado, ainda que por alguns minutos, sempre observa que a felicidade nossa está assentada na paz espiritual daqueles que amamos e de todos os irmãos de caminhada que padecem dores que mal podemos imaginar.

Por isso, a solução é trabalho, muito trabalho na seara do bem, mesmo com injúrias e dificuldades.

— Tudo certo, alma querida, mas estou ainda um pouco distante de tanto trabalho, e, falando de coisas do coração, ouso indagar-lhe algo que, em nossos papos, marcou minha vida:

Lembra-se dos bons tempos, os que não voltam mais, das noites intermináveis em que falávamos sem cessar?

Você, que tanto admira e cultua a música clássica, demonstrava, naqueles momentos, especial simpatia, ao rodar do velho toca-fitas, presença obrigatória nesses encontros, por uma música popular composta pelo famoso maestro toscano Mantovani, intitulada Serenata de Amor.

Aprendi a gostar dessa música. Você se recorda dela?

— E como… tão bela! E, se melhor observar, você vai perceber que tem a inspiração do romantismo clássico de Chopin. Por vezes, quando me concedem alguns minutos de lazer, ouço-a com você em seu carro.

Seus acordes suaves, algo tristes, me envolvem em recordações dos bons tempos a que você se refere. Esses tempos voltam, voltam sim, Caio. Fique tranqüilo.

Por alguns momentos, não conseguimos estancar as lágrimas. As minhas pesadas, com algum desespero, e as dele leves, a lhe ressaltar o rosto espiritualizado. Parecia que Deus as pintava de luz.

Vi-me impossibilitado de continuar a entrevista. Com a voz embargada, tive muita dificuldade em dizer-lhe:

— Não consigo entrevistá-lo mais, Chico. A emoção não o permite. Perdoe-me, não sou Humberto de Campos… Apenas lhe farei mais uma, a derradeira pergunta:

Daqui a alguns dias, passa o Natal, chega o Novo Ano, e você completa 100 anos…

Qual a mensagem que gostaria de dirigir aos milhões de brasileiros que o adoram e respeitam, sejam espíritas ou estejam envolvidos em crenças diversas da nossa?

— Kardec conclui o capítulo XV de nosso Evangelho, lembrando-nos com muita clareza que o verdadeiro espírita e o cristão autêntico são uma só e a mesma coisa.

Agradeço a todos o carinho cristalizado no amor que sempre me dispensaram. É eterno o meu reconhecimento pelas visitas, pelas orações em meu favor, e rogo de coração que me relevem a condição espiritual ainda tão incipiente.

Não mereço tanta atenção. Suplico a Nosso Senhor Jesus Cristo que nos inspire e peço-lhes que juntos não esqueçamos suas palavras:

— Amai-vos uns aos outros como eu vos amei.

Lágrimas rolavam de seu rosto angelical, e, após alguns momentos, pena que fugazes, de indescritível paz, Chico falou-me:

— Preciso partir, e você precisa acordar.

Antes de partir, contudo, ainda fizemos uma breve caminhada pelo cativante local. E daquele seu jeito tão característico de falar das coisas, enquanto percorríamos um trecho da serra, chegando próximo a uma nascente, nosso amigo e benfeitor ponderou:

— Essas águas vão encorpar e tortuosas percorrerão um longo trajeto até o mar.

Nos sítios por onde passarem, comunas maiores ou minúsculos aglomerados da gente nos campos, as águas transformadas em caudaloso rio recolherão pensamentos e recordações que, por séculos, permanecem arquivados em suas margens, principalmente na margem que olha para o sul.

E afoitas, não sopitando o ímpeto de desaguar no mar, deslizarão até o Atlântico, na ânsia de mostrar a toda a humanidade as mais comoventes histórias de amor. E partiu.

Ainda não era noite, mas os raios solares mais pálidos do inverno não conseguiam ofuscar o facho de luz que o acompanhou rumo de sua morada, lá no alto do firmamento.

Abri os olhos com a impressão muito forte de que estivera por alguns momentos com Chico Xavier. Sonho?

Não sei dizer, mas desses momentos restou aquela saudade que dói. A gente anda de um lado para o outro desassisado, depois, volta a dura realidade, e compreendemos que a vida continua.

Até breve, Chico!

GEEM

Caio Ramacciotti
GEEM – Grupo Espírita Emmanuel
São Bernardo do Campo, Natal de 2009.
(Às vésperas de 2010)