Há 20 anos, o coração de Chico Xavier parou de bater em Uberaba, após 92 anos de palpitações intensas e inundações de afeto. Neste 2022 tão desafiador, com uma pandemia ainda a ser erradicada e uma guerra de consequências imprevisíveis, a lembrança de Chico e de suas lições serve de alento e esperança.

Um antídoto contra o pessimismo, o derrotismo, o radicalismo e outros ‘ismos’ que nos abatem enquanto o mundo parece ruir, sob o peso da fatídica polarização, que divide a humanidade entre nós e os outros, vencedores e perdedores, esquerda e direita, aliados e inimigos, como se não fizéssemos parte, todos nós, de um único grupo: o dos humanos destinados a nascer, viver e morrer e, se possível, deixar algum legado positivo nesta nossa passagem por aqui.

Em meio a tantas ações e discursos virulentos, a voz suave de Chico ganha força ao defender valores básicos como o respeito ao próximo e ao diferente, a valorização da vida em todas as suas manifestações (incluindo, claro, o meio ambiente e o mundo animal) e o apoio a quem às vezes só precisa do mínimo – de algum respeito e – para recuperar as forças e seguir em frente.

Mesmo sob ataque e tensão, Chico sempre hasteou a bandeira da pacificação. Não por acaso referia-se aos adversários como “companheiros desafiadores”, aqueles que, ao colocarem suas obras, atitudes e declarações à prova, o tornavam mais vigilante e resistente.

— O martelo que atinge o prego o torna mais firme – ensinava o guia Emmanuel, segundo Chico.

Contra o “armai-vos uns contra os outros” das posturas provocativas e beligerantes – hoje transformadas também em política armamentista de Estado em determinados países –, Chico sempre pregou e praticou o “amai-vos uns aos outros”. Amar e não armar era a legítima defesa adotada e receitada por ele.

— Se pudesse, se tivesse alguma mínima autoridade, mandaria pintar na fachada de todos os prédios, esta frase: “Amai-vos uns aos outros, como eu vos amei” –, disse em entrevista gravada em vídeo, hoje disponível no youtube.

E, no lugar dos ‘discursos de ódio’ (expressão inconcebível para quem foi saudado como o “Homem-Amor”, indicado ao Prêmio Nobel da Paz), palavras de cura.

 “Maus? Ainda não bons…” “Filho de mãe solteira? Filho de pai ausente.” “Presidiários? Educandos…”

Definições do sábio mineiro, apontadas para o perdão ou para a esperança, nunca para o menosprezo ou a discórdia.

— As palavras carregam uma energia poderosa –, Chico ensinava. – Imagina só se eu dissesse para alguém, em vez de “Vai com Deus”, “Vai com o Diabo.” Deus nos livre.

Alvo de sucessivos ataques ao longo da vida e de permanente desconfiança de quem duvidava da possibilidade de intercâmbio com espíritos, Chico foi aprendendo com o tempo a resistir às críticas e insultos sem reclamar.

— Fico triste quando alguém me ofende, mas com certeza ficaria muito mais triste se fosse eu o ofensor – dizia.

Cuidado no uso das palavras e consciência à cada ação e reação. Lições de Chico, muito bem-vindas nestes tempos tão truculentos.

Basta olhar para os lados e sintonizar no noticiário para testemunharmos o contrário da cordialidade e da gentileza nas ruas, em muitas casas e nas mais diversas esferas do poder.

 

NA SOMBRA DO ABACATEIRO

Neste cenário de tantas turbulências, a figura de Chico e toda a sua obra – mais de 500 livros já publicados – destacam-se na paisagem como uma espécie de abrigo. Como a sombra do abacateiro de Uberaba, no terreno a céu aberto onde ele costumava receber amigos e visitantes de todos os cantos do país, aos sábados, no início dos anos 1980, para contar histórias, comentar o evangelho, falar da vida.

E é para lá – para a sombra daquele saudoso abacateiro – que convido agora os leitores deste querido Correio Fraterno a voltar.

15 de janeiro de 1983. Primeira reunião do ano. Chico está acomodado entre os amigos, sorriso suave sob a brisa fresca, aos 72 anos, pronto a compartilhar suas experiências com a multidão silenciosa.

A expectativa é grande.

Logo após a prece de abertura, o professor Thomaz abre O evangelho segundo espiritismo” em um capítulo aleatório e o tema que vem à tona – já bastante preocupante na época – faz o ambiente pesar: a depressão e o suicídio.

Chico toma a palavra e, com seu fio de voz, valoriza a ciência da psicologia e da psiquiatria para, em seguida, destacar, em primeiro lugar, a Ciência da Vida: o diálogo em família, que já começa a se perder por conta dos excessos diante da televisão e do ritmo às vezes um tanto frenético demais da vida.

Em seguida, propõe exercícios de paciência e calma no dia a dia. A compreensão de que nem tudo sairá como o planejado e de que os imprevistos fazem parte da jornada de todos nós. “Compreensão de que nossa dor não é maior do que a dor dos outros.” E de que tudo passa e de que o que não faz sentido hoje, mais tarde fará.

Lágrimas escorrem aqui e ali entre os participantes do encontro, talvez de quem já tenha pensado em suicídio, sobrevivido a ele ou perdido um ente querido para o desespero.

E Chico segue adiante:

— Devemos contar com a lutas, com a tempestade, com a doença e até mesmo com a morte. Precisamos estar preparados.

O então jovem companheiro de doutrina Carlos Baccelli, seu futuro biógrafo, anota cada palavra. Frases que seriam impressas, mais tarde, no livro Chico Xavier à sombra do abacateiro.

Lições como esta, a serem exercitadas hoje, em meio à nossas intempéries virais e bélicas:

— Precisamos ter coração que sente e guardar silêncio e calma nas horas de tempestade.

E é com ‘este coração que sente’ – e que ele dizia ser atravessado pela dor das mães enlutadas – que Chico convoca os frequentadores da reunião à sombra do abacateiro para uma missão capaz de espantar ou pelo menos amenizar qualquer depressão: o trabalho. O trabalho que “engrossa o fio da vida”, como ele dizia. Trabalho em favor do outro, por menor que seja ou que pareça.

— Precisamos cumprir com nosso dever de sermos mais úteis.

Chico explica aos poucos, durante a reunião, como este trabalho que pode parecer miúdo no início vai fazendo a diferença no final.

E começa com uma parábola — O que compete a cada um

 

À sombra deste abacateiro, Chico também chegou a participar de trabalhos, reunindo famílias para o Evangelho e distribuição de alimentos

— Havia um incêndio na floresta. Um pássaro enchia as asas de gotas de água e as jogava no incêndio. Os outros pássaros riam. O pequeno pássaro explicou que não tinha pretensão de apagar o fogo, mas que estava fazendo o que podia, a sua parte.

E Chico comenta: “Não é rindo que vamos resolver.”

Foi este mesmo Chico quem, ao ser criticado pelo assistencialismo de suas campanhas beneficentes – de doações de roupas, alimentos e remédios –, respondeu aos ataques com a seguinte pergunta:

— Se uma casa está pegando fogo, eu cruzo os braços e espero pela chegada dos bombeiros ou ajudo com alguns baldes d’água?

Mas voltemos à sombra do abacateiro. Depois de lembrar o pássaro com suas ‘asas de gotas de água’, Chico se lembra também de outra trabalhadora tão incansável quanto ele: Madre Tereza de Calcutá, praticante e defensora do tal ‘assistencialismo’, censurado por quem prefere esperar pela chegada dos bombeiros.

— Sei que meu trabalho representa uma gota no oceano, mas sem ela o oceano seria menor – ela dizia a quem questionava seu esforço incessante, e às vezes um tanto solitário, em favor dos necessitados.

A mesma Madre Tereza de Calcutá que, ao ser criticada por “dar o peixe em vez de ensinar o outro a pescar”, reagiu ao comentário com a seguinte pergunta:

— E quando a pessoa não tem nem força para segurar a vara?

Lições de Chico, de Madre Teresa e de Dalai Lama também, que – ao ser perguntado sobre sua religião – deu a seguinte resposta:

“Minha religião? Minha religião é muito simples. Minha religião é a gentileza.”

Tão simples…

Ação em favor do outro, em vez de polarização.

Palavras de afeto, em vez de discursos de ódio.

Trabalho em favor do outro no tratamento contra a depressão.

 

O DESAFIO

Por estas e outras – pelo equilíbrio e coerência entre discurso e prática – , hoje defino Chico, a quem chamo de “o sábio mineiro”, como uma combinação muito bem equilibrada de monge budista e filósofo estoico. Um mestre no exercício da paciência e da disciplina, sempre atento aos próprios pensamentos, sentimentos e ações, em processo permanente de autoconhecimento e autodesenvolvimento.

E é com esta frase dele – um desafio para todos nós – que encerro este texto:

— Dou a qualquer um o direito de ser como é, mas dou a mim mesmo o dever de ser a cada dia melhor.

Se cada um de nós fizer a nossa parte (como o pássaro de ‘asas de gota d’água), ajudaremos – e muito – a por de pé um ‘ismo’ pelo qual vale muito a pena lutar: o humanismo, que move pessoas únicas, de corações sem limites, como Chico Xavier.

De gota em gota, a gente faz chover.

Marcel Souto Maior

30 de maio de 2022

Marcel Souto Maior é jornalista, escritor e roteirista, autor de livros como Por trás do véu de Ísis, As lições de Chico Xavier e dos best-sellers adaptados para o cinema: As vidas de Chico Xavier e Kardec, a biografia.

 

Publicado no Jornal Correio Fraterno – Edição nº 505 – Maio-Junho/2022